Abre-Caminho
As águas de kalunga, são nosso ponto de partida e também de chegada. Diante delas, nos situamos na soleira da Porta do Não Retorno, essa imagem instável criada por Dionne Brand. De lá avistamos o lembrete da inexistência de um lugar para retorno e decidimos por não nos rendermos à interdição como único caminho. A imagem feliz da fotografia do nosso álbum de família anuncia a recusa. A redundante presença do mar é nossa escolha ética/estética e navegar pelos cinco atos nosso convite. Essa reivindicação performativa do direito a olhar em um nível pessoal, mobiliza aspectos formais e históricos, sobrepondo enunciados visuais que evocam a estética da miscelânea negra. Falhas, mal contato, ruídos, sobreposições acompanharão a narrativa dos Atos, dando pistas da natureza incompleta e instável do ensaio que, desde o Espírito Santo - estado situado no sudeste brasileiro - convoca aqueles que estão situados na soleira da Porta (ou não), ao mergulho nas ruínas do Atlântico Sul.
Road-Opener
Kalunga is both our point of departure and arrival. Before it, we stand on the threshold of the Door of No Return, that unsettling image created by Dionne Brand. From there, we catch sight of the reminder that there is no place to return to, and resolve not to surrender to interdiction as the only possible way. The happy image in the photograph of our family album announces the refusal. The redundant presence of the ocean is our ethical/aesthetic choice, and navigating through the five Acts is our invitation. This performative claim of the right to look on a personal level, mobilises formal and historical aspects, juxtaposing visual statements that evoke the aesthetics of black miscellanea. Crackles and breaks, faulty contact, noises, overlaps will accompany the narrative of the Acts, alluding to the incomplete and unstable nature of the essay that, from the southeastern state of Espírito Santo invites those on the threshold of the Door (or not), to dive into the ruins of the South Atlantic.
Kalunga
A ideia de kalunga presente neste trabalho é inspirada nas reflexões e traduções realizadas pelo filósofo brasileiro Tiganá Santana, cuja produção acadêmica e musical nos afeta e movimenta. Em seus textos, Santana nos apresenta kalunga à partir de algumas perspectivas das filosofias africanas oriundas do tronco linguístico bantu, cuja presença de alguns de seus grupos étnicos encontra-se em abundância no Brasil devido a diáspora africana A ideia de kalunga presente neste trabalho é inspirada nas reflexões e traduções realizadas pelo filósofo brasileiro Tiganá Santana, cuja produção acadêmica e musical nos afeta e movimenta. Em seus textos, Santana nos apresenta kalunga à partir de algumas perspectivas das filosofias africanas oriundas do tronco linguístico bantu, cuja presença de alguns de seus grupos étnicos encontra-se em abundância no Brasil devido a diáspora africana promovida pela economia da escravização. Na perspectiva kikongo, kalunga tem um caráter líquido e sua acepção se relaciona com a ideia de “oceano”. Em kimbundu, língua irmã do kikongo, kalunga é “mar”, e “ter razão” é lunga. Neste sentido, o mundo, [nza], tornou-se uma realidade física, flutuando em kalunga (na água infinita dentro do espaço cósmico). Nesse alicerce de pensamento, a liquidez de kalunga também inspira uma compreensão em torno do infinito (enquanto nsensolo), ou seja, daquilo que se expande a partir de um líquido (do verbo sensa), enunciando haver um lado intangível do mundo. Sob a terra, esse mundo intangível é protegido por seu lado físico, ao mesmo tempo que o sustenta, principalmente por meio dos gênios espirituais (simbi). “O que se vê é o invólucro do que não se vê”. De acordo com Santana, kalunga é a força que transbordou o vazio e que impulsionou, significou e acalentou a vinda das diversas gentes que partiram do continente africano para as Américas.
Kalunga
The idea of kalunga presented in this work is inspired by the reflections and translations made by the Brazilian philosopher Tiganá Santana, whose academic and musical production affects and moves us. In his writings, Santana presents kalunga from some perspectives of African philosophies arising from the Bantu linguistic branch, of which some ethnic groups are abundantly found in Brazil due to the African diaspora promoted by the slave economy. From the Kikongo perspective, kalunga has a liquid character and its meaning is related to the idea of "ocean". In Kimbundu, the sister language of Kikongo, kalunga is "sea", and "to be right" is lunga. In this sense, the world, [nza], has become a physical reality, floating in kalunga (in the infinite waters within the cosmic space). On this foundation of thought, the liquidity of kalunga also inspires an understanding of the infinite (as nsensolo), that which expands from a liquid (from the verb sensa), enunciating that there is an intangible side to the world. Under the earth, this intangible world is protected by its physical side, while it sustains it at the same time, mainly through the spiritual geniuses (simbi). "What is seen is the cover, the casing of what is not seen". According to Santana, kalunga is the force that overflowed the nothingness and impelled, gave meaning and nurtured the coming of all the various peoples who left Africa for the Americas.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
SANTANA, Tiganá. Tradução, interações e cosmologias africanas. In Cad. Trad., Florianópolis, v. 39, nº esp., p. 65-77, set-dez, 2019
Porta do Não Retorno
Para Dionne Brand, poeta, novelista, documentarista e professora universitária nascida em Trinidad e radicada no Canadá, a Porta do Não Retorno é um lugar onde os antepassados partiram de um mundo Para Dionne Brand, poeta, novelista, documentarista e professora universitária nascida em Trinidad e radicada no Canadá, a Porta do Não Retorno é um lugar onde os antepassados partiram de um mundo para outro, do Velho Mundo para o Novo, onde todos os nomes foram esquecidos, todos os começos foram reformulados. Um lugar que demarca ao mesmo tempo o início da criação dos negros na diáspora do Novo Mundo e o fim de começos rastreáveis. Para além do monumento construído em Uidá, no Benin, Brand entende a Porta não como um lugar em absoluto, mas uma metáfora para um lugar. Na verdade, para uma coleção de lugares. Segundo Brand, a Porta existe como uma ausência, um lugar que nós não conhecemos mas que no entanto, sabemos que ele existe tal qual o chão que caminhamos. De acordo com a poeta, cada gesto que nossos corpos fazem, de alguma forma, são gestos em direção à essa Porta.
The Door of No Return
For Dionne Brand, poet, novelist, documentary filmmaker and university professor, born in Trinidad and based in Canada, the Door of No Return is a place where the ancestors departed from one world to another, from the Old World to the New, where all names were forgotten and all beginnings were recast. A place that marks both the beginning of the creation of Blacks in the New World diaspora, and the ending of traceable beginnings. Beyond the monument built in Ouidah, Benin, Brand understands the Door not as a place at all, but as a metaphor for a place. In truth, for a collection of places. According to Brand, the Door exists as an absence, a place we don't even know and have never seen. Nevertheless, just like the ground we walk on, we know for sure it exists. According to the poet, every gesture that our bodies make are, in some way, movements towards that Door.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
BRAND, Dionne. A map to the door of no return : notes to belonging. - Toronto: Vintage Canada, 2001.
O direito a olhar
Nicholas Mirzoeff, ativista visual e um dos fundadores da Cultura Visual, reivindica o “direito a olhar” como algo que se diferencia da visualidade, sendo exatamente o seu oposto. Mirzoeff define a visualidade como “uma palavra antiga, para um projeto antigo”, algo mais que um vocábulo teórico. Para Mirzoeff, o termo visualidade tem seu início no século XIX e faz referência à visualização da história: ato criado a partir de informações, imagens e ideias, que manifesta a autoridade do visualizador. Ele traz também que os primeiros domínios da visualidade foram as escravidões nas plantations, que eram monitoradas pela vigilância de um supervisor -o substituto do soberano, vigilância esta reforçada pela punição violenta que sustentou a moderna divisão do trabalho. A reivindicação de Nicholas Mirzoeff pelo direito a olhar, opõe-se assim à autoridade da visualidade, tendo a pessoalidade seu ponto de partida e a autonomia como princípio, junto ao pleito da subjetividade e coletividade políticas. O direito contido no direito ao olhar, “contesta primeiramente o direito de propriedade sobre outra pessoa”. É a recusa da “permissão de que a autoridade suture sua interpretação do sensível, para fins de dominação”, como lei e como estética. O direito ao olhar “recusa-se a ser segregado, e espontaneamente inventa novas formas”.
The right to look
Nicholas Mirzoeff, visual activist and one of the founders of Cultura Visual, claims the "right to look" as something that differs from visuality, being the exact opposite. Mirzoeff defines visuality as "an old word for an old project", something more than a theoretical term. For Mirzoeff, the term visuality has its beginnings in the 19th century and refers to the visualisation of history: an Act created from information, images and ideas, which manifests the authority of the visualizer. He also brings that the first domains of visuality were the slave plantations, which were monitored by the surveillance of a supervisor — the surrogate of the sobereign. This surveillance was reinforced by the violent punishment that sustained the modern division of labor. Nicholas Mirzoeff's claim for the right to look is thus opposed to the authority of visuality, beginning at a personal level and holding autonomy as a principle, together with the claim of political subjectivity and collectivity. The right contained in the right to look, "first contests the right of ownership over another person". It is the refusal to "the permission for authority to suture one's interpretation of the sensible, for the purpose of domination", as law and as aesthetics. The right to look "refuses to be segregated, and spontaneously invests new forms".
REFERÊNCIA/REFERENCE:
MIRZOEFF, Nicholas. O direito a olhar.ETD -Educação Temática Digital, Campinas, SP, v. 18, n. 4, p. 745-768, nov. 2016. ISSN 1676-2592. Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/etd/
article/view/8646472. Acesso em: 24 jul. 2022.
Estética da miscelânea negra
Em “Dear April: The Aesthetics of Black Miscellanea” (2021), a geógrafa Katherine McKittrick, aciona a estética da miscelânea negra ao analisar o livro ``Under the Knife``, da poetisa e artista visual Krista Franklin. Dentre as práticas metodológicas envolvidas em seu trabalho, presentes também no de outras artistas que empregam metodologias negras, está a acumulação textual. Vários gêneros, estilos e texturas criativas (fotografias, colagens, citações, histórias de família, letras de músicas, manuscritos, etc.) são mobilizadas para construção de um posicionamento crítico e estético diante dos sistemas sociais que objetificam mulheres e comunidades negras enquanto esperam receber delas uma leitura clara e “autorizada” da negritude e da feminilidade negra. Devolver esse olhar, reescrever, reimaginar, reordenar o conhecimento, recuperar a subjetividade e afirmar a agência humana de figuras que foram documentadas e censuradas pelo estado-nação, são gestos que as pistas visuais e textuais lançadas pela estética da miscelânea negra oferecem. Quando pessoas negras contam suas histórias sem participar da economia narrativa que funciona para objetificá-las, emerge uma gramática de possibilidades que será mais familiar para alguns e opaca para outros. Como conclui McKittrick: “Estou, estamos, exaustos de explicar demais o que cada fragmento de negridade significa em um mundo que continuamente emoldura a negridade como um recipiente conhecível”.
Aesthetics of black miscellanea
In "Dear April: The Aesthetics of Black Miscellanea" (2021), geographer Katherine McKittrick engages the aesthetics of Black miscellanea when analyzing the book "Under the Knife", by poet and visual artist Krista Franklin. Among the methodological practices involved in her work, and in the works of other artists who employ black methodologies, is textual accumulation. Various genres, styles and creative textures (photographs, collages, citations, family stories, song lyrics, manuscripts, etc.) are assembled to build a critical and aesthetic stand in the face of social systems that objectify Black women and communities, while hoping to receive from them a clear and "authorized" reading of blackness and black femininity. Returning that same look, rewriting, reimagining, reordering knowledge, recovering subjectivity, and affirming the human agency of figures that have been documented and censored by the nation-state, are gestures offered by the the visual and textual hints launched by the aesthetics of the black miscellanea. When black people tell their stories without participating in the narrative economy that works to objectify them, a grammar of possibilities emerges that will be more familiar to some and opaque to others. As concludes McKittrick : "I am, we are, exhausted from over-explaining what every scrap of blackness means in a world that continually frames blackness as a knowable recipient.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
McKittrick, K. (2022), Dear April: The Aesthetics of Black Miscellanea. Antipode, 54: 3-18. https://doi.org/10.1111/anti.12773
ATO [1]
INSURREIÇÃO
O ato [1], “insurreição”, parte da beira do mar em direção às ruínas da igreja de São José do Queimado, local no qual ocorreu em 1849 a principal insurreição escravista do Espírito Santo, como testemunho da desobediência e da recusa ao cárcere.
PORTA DO NÃO RETORNOIGREJA DE SÃO JOSÉ DO QUEIMADO
MULHERES FAMILIARES
ACT [1]
INSURRECTION
Act [1], "insurrection", starts from the seashore towards the ruins of the church of São José do Queimado, where the main slave insurrection of Espírito Santo took place in 1849, as a testimony of disobedience and refusal to incarceration.
THE DOOR OF NO RETURNCHURCH OF SÃO JOSÉ DO QUEIMADO
FAMILIAR WOMEN
Igreja de São José do Queimado
Em torno da construção da igreja de São José, na localidade de Queimado, no Espírito Santo, ocorreu em 1849 a principal insurreição escravista do estado. Quando des-objetificamos as presenças dos construtores e seus líderes Elizário Rangel, Chico Prego e João da Viúva - então escravizados -, e enxergamos neles habilidosos orquestradores de gestos insubmissos, a revolta se torna mais uma pista da imbricada relação entre o trabalho de erigir arquiteturas colonias no Atlântico Sul e a promoção de seu próprio arruinamento. De acordo com a historiadora Lavínia Cardoso, essa revolta resulta da construção de processos políticos de conquista da liberdade, em busca da carta de alforria. A rede de ações que a antecede se estabelece na negociação pela liberdade nos espaços de improviso do cotidiano [como o canteiro de obra], e o exercício de diálogo como forma de promover políticas emancipatórias. A pesquisadora Kenia Freitas, posiciona as ruínas de Queimado como um PretEspaço, ou seja, um espaço preto utópico que nos faz pensar não apenas nos corpos pretos ausentes, mas nas ressonâncias de suas presenças no que materialmente ainda permanece: a mata, as pedras, a terra, a topografia. Um lugar no qual é possível perceber e sentir o desejo de liberdade e de utopia dos homens, mulheres e crianças insurgentes, que imaginaram, especularam e vivenciaram as suas utopias pretas.
Church of São José do Queimado
Around the construction of the church of São José, in the town of Queimado, in Espírito Santo, the main slave insurrection in the state took place in 1849. When we de-objectify the presence of the builders and their leaders Elizário Rangel, Chico Prego and João da Viúva — then enslaved — and see in them skillful orchestrators of unsubmissive gestures, the revolt becomes yet another hint to the intertwined relationship between the work of erecting colonial architecture in the South Atlantic and the promotion of its own ruin. According to historian Lavínia Cardoso, this revolt resulted from the construction of political processes of conquest of freedom, in search of the letter of manumission. The network of actions that precedes it is established in the negotiation for freedom in everyday improvisation spaces [such as the construction site], and the exercise of dialogue as a way of promoting emancipatory policies. Researcher Kenia Freitas, positions the ruins of Queimado as a "PretSpace", a utopian black space that makes us think not only of absent black bodies, but of the resonances of their presence in what materially still remains: the forest, the rocks, the land, the topography. A place where it is possible to perceive and to feel the desire for freedom, and the utopia of insurgent men, women and children, who imagined, speculated and lived their black utopias.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
CARDOSO, Lavínia Coutinho. Revolta do queimado: negritude política e liberdade no Espírito Santo.- Curitiba: Appris, 2020. FREITAS, Kenia. PretEspaço: descorporificação e desaparição no cinema negro. Anotações de uma visita à Queimado durante o EntreLabs em 25 de Setembro de 2021. In Coletiva Terra Preta Cidade - Medium. Disponível em https://bityli.com/NiBnbf
Mulheres familiares
As fotografias que integram este ensaio visual saíram dos nossos arquivos familiares. Uma família de origem afro-indígena, cujo prolongamento até os dias de hoje, até nós, atesta a habilidade de nossos antepassados em burlar a política de morte que sustentou (e continua a sustentar) o mundo moderno. A fotografia de mulheres de nossa família levando crianças felizes para a praia da cidade-ilha de nome Vitória, abre os caminhos do Ato 1. Vitória foi o nome dado a esta cidade-ilha, onde nascemos, em comemoração ao massacre de indígenas goyitacás pelos portugueses, no século XVI, para tomada de suas terras. Dentre as mulheres que emergem na segunda fotografia sobreposta às ruínas da Igreja de São José do Queimado, temos Florisbela Duarte dos Santos, nossa mais velha mais antiga cuja imagem conhecemos. Uma mulher indígena cuja etnia desconhecemos, nascida em Porto Cachoeiro, atual Santa Leopoldina, no final do séc. XIX, herdeira dos sobrevivente do genocídio português. A presença dessas mulheres no ensaio é um pedido de licença, um ritual, um sussurro: não esquecemos e ainda estamos vivas!
Familiar women
The photographs that make up this visual essay came out of our family archives. An Afro-indigenous family, whose extension to the present day, down to us, attests to the ability of our ancestors to circumvent the politics of death that sustained (and continues to do so) the modern world. The photograph of women in our family, taking happy children to the beach of the island-city Vitória, opens the way for Act 1. Vitória was the name given to this island-city where we were born, in commemoration of the massacre of the Goyitacás Indians by the Portuguese, in the 16h century, to take over their lands. Among the women that emerge in the second photograph, superimposed on the ruins of the Church of São José do Queimado, we have Florisbela Duarte dos Santos, our senior lady elderly, whose image we have seen. An Indigenous woman, whose ethnicity we do not know, born in Porto Cachoeiro, currently Santa Leopoldina City, at the end of the 19th century, heiress to the Portuguese genocide survivors. The presence of these women in the essay is a request for permission, a ritual, a whisper: "we have not forgotten, and we are still alive!".
ATO [2]
DES-CAPTURA
O ato [2] anuncia os gestos de des-captura, projetos de emancipação e o deslocamento da cidade para as serras e matas.
OPACIDADEQUILOMBOS
CONGADA DE SÃO BENEDITO
ACT [2]
DE-CAPTURE
Act [2] announces the gestures of "de-capture", emancipation projects, and the displacement from the city to the mountains and forests.
OPACITYQUILOMBOS
CONGADA DE SÃO BENEDITO
Opacidade
O escritor, filósofo e ensaísta martinicano Édouard Glissant, em seu ensaio “Pela Opacidade” constrói argumentos em torno da defesa do direito à opacidade, se contrapondo ao que chama de processo da “compreensão” dos seres e das idéias na perspectiva do pensamento ocidental. Para ele, a transparência é uma exigência desse pensamento para uma suposta compreensão, aceitação e, por consequência, julgamento. Glissant afirma que aceitar as diferenças é perturbar a hierarquia da escala e, uma vez que a suposta compreensão da diferença é mobilizada como condição, as supostas relações estabelecidas daí em diante, se realizam a partir de determinadas normas e sistemas que, para ser viável, reduz, recria e consente as diferenças. O direito à opacidade, seria não o fechamento em uma autarquia impenetrável, mas a subsistência em uma singularidade não redutível. Opacidades podem coexistir, confluir, tramando os tecidos cuja verdadeira compreensão levaria à textura de certa trama e não à natureza dos componentes. “Caduca, assim, a dualidade de pensar em si mesmo e pensar o outro. Qualquer Outro é um cidado e não mais um bárbaro. O que está aqui está aberto, tanto quanto o de lá. Eu não saberia projetar de um a outro. O aqui-lá é a trama que não trama fronteiras. O direito à opacidade não estabeleceria o autismo, ele fundamentaria realmente a Relação, em liberdades”.
Opacity
The Martinican writer, philosopher and essayist Édouard Glissant, in his essay "For Opacity", builds arguments around the defense of the right to opacity, in opposition to what he calls the process of "understanding" beings and ideas from the perspective of Western thought. From him, transparency is a requirement of this thinking for a supposed understanding, acceptance and, consequently, judgment. Glissant argues that to accept differences is to disturb the hierarchy of scale and, once the supposed understanding of differences is mobilized as a condition, the supposed relationships established from then on are based on certain norms and systems that, in order to be viable, reduce, recreate and consent to differences. The right to opacity would not be closing in on an impenetrable autarchy, but a subsistence in a non-reducible singularity. Opacities can coexist, come together, weaving the fabrics of which true understanding would lead to the texture of a certain weave, rather than to the nature of the components. "Thus, the duality of thinking about oneself and thinking about the other expires. Every other is a citizen and no longer a barbarian. What is here is open, as much as what is there. I wouldn't know how to project from one to the other. The here-there is the weave, and it weaves no boundaries. The right to opacity would not establish autism, it would be the real base for Relation, in freedoms."
REFERÊNCIA/REFERENCE:
GLISSANT, Édouard. Pela Opacidade. In Revista Criação & Crítica, no .1: 53-55, 2008.
Quilombos
De acordo com a historiadora brasileira Beatriz Nascimento, a origem do conceito do Quilombo é africana, remete à cultura bantu e tem sido dinamicamente atualizada no tempo . Os quilombos eram núcleos humanos com variadas quantidades de habitações. No período escravista, foi uma estrutura social na qual sujeitos africanos e crioulos (brasileiros) tiveram possibilidade de estabelecer agrupamentos baseados em novas relações. Na insurreição que aconteceu na igreja de São José de Queimado (1849), alguns dos que se emanciparam com a revolta fundaram quilombos, sobretudo nas terras mais elevadas, como as serras. A região do Morro do Mestre Álvaro, serra que aparece imponente na paisagem do Ato 2, foi um dos destinos dos emancipados que na localidade teriam criado um quilombo. Os quilombos são assim sistemas sociais alternativos organizados pelos negros, formados pela necessidade humana de agrupar-se, a partir de um modelo de habitar que não aquele violentamente estabelecido pelo colonizador.No momento em que o negro se organiza coletivamente, ele está formando (eternamente) um quilombo.
Quilombos
According to the Brazilian historian Beatriz Nascimento, the origin of the concept of Quilombo is African and refers to the Bantu culture, and has been dynamically updated over time (NASCIMENTO, 1981). Quilombos were human nuclei with large numbers of dwellings. In the slave period, it was a social structure in which African and Creole (Brazilian) subjects were able to establish new groups, based on new relationships. In the insurrection that took place in the church of São José de Queimado, in 1849, some of those who emancipated themselves with the revolt, founded quilombos, especially in the higher lands, such as the mountains. The region of Mount Mestre Álvaro, that appears imposing in the landscape of Act 2, was one of the destinations where the emancipated in the surrounding area had created a quilombo. They were alternative social systems organized by blacks, formed by the human need for grouping, and based on a specific model of inhabiting other than that arbitrarily and violently established by the colonizer. Every single time blacks organize themselves collectively, they are (eternally) forming a quilombo.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
NASCIMENTO, Beatriz. Sistemas sociais alternativos organizados pelos negros: dos quilombos às favelas. 1981. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
Congadas de São Benedito
O fragmento de música que aparece no Ato 2 é retirado de uma congada de São Benedito, que acontece há mais de 200 anos no Espírito Santo. Um navio teria naufragado próximo à costa do estado, e os africanos escravizados, à bordo no navio, teriam intercedido ao santo preto pelas suas vidas, e assim teriam conseguido chegar à praia, agarrados ao mastro do navio. Desde então, grupos de africanos e seus descendentes têm se organizado em comunidades religiosas que, dentre suas práticas, festejam o santo e a sua sobrevivência em ritual de cortada, puxada, fincada e retirada do mastro, acompanhado de toques, cantos e rezas, que seguem em procissão pelas cidades. Os instrumentos, indumentárias, personagens e ritos que compõem a ritualística, entregam que para além da evocação do santo preto católico, o ritual é referenciado nas culturas expressivas do reino de Congo-Angola e do catolicismo africano, atualizado e transcriado no lado de cá. Aqui, o caráter líquido e limiar entre mundos de kalunga está presente no quase naufrágio e reorganiza a vida dos sobreviventes em terras coloniais.
Festa de Congo de Roda D’água, Cariacica (ES)
Congadas de São Benedito
The musical fragment heard in Act 2 is taken from a congada de São Benedito that has been taking place in Espírito Santo for over 200 years. A ship would have sunk near the coast of the state, and the enslaved Africans aboard the ship would have interceded with the black saint for their lives, and thus would have managed to reach the beach, clinging to the ship's mast. Since then, Africans and their descendants have celebrated in a ritual of cutting, pulling, planting and removing the mast from the ground, accompanied by specific drum beats, chants and prayers that follow in procession through the towns. The instruments, costumes, characters and rites that make up the groups named Bandas de Congo, claim that in addition to the evocation of the black catholic saint, the ritual is referenced in the expressive cultures of the kingdom of Congo-Angola and of African Catholicism, updated and transcreated on this side.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
[PT] Agradecimento ao historiador e professor Rafael Galante, cujos conteúdos compartilhados no curso “As diásporas centro-africanas e a formação das musicalidades Afro-Atlânticas (Módulo I e II)”, foram (e continuam sendo) fundamentais para as reflexões expostas neste texto.
[EN] Thanks to historian and professor Rafael Galante, whose contents shared in the course “Central African Diasporas and the Formation of Afro-Atlantic Musicalities (Modules I and II)” were (and continue to be) fundamental for the reflections presented in this text.
ATO [3]
RE-ENCANTAR A TERRA
O ato [3], “re-encantar a terra”, busca na paisagem da cidade de Santa Leopoldina as evidências da terra usurpada dos indígenas, interditada aos descendentes de escravizados e ofertada aos imigrantes europeus, como tentativa de alcançar o fictício futuro branco.
CANTO VISSUNGOARQUITETURAS ESTRANGEIRAS
ACT [3]
RE-ENCHANT THE LAND
Act [3] , "re-enchant the land", searches in the landscape of Santa Leopoldina City for evidence of the land usurped from the Indigenous people, interdicted to the descendants of enslaved people, and offered to European immigrants in an attempt to reach the fictitious white future.
VISSUNGO CHANTFOREIGN ARCHITECTURE
Canto Vissungo
Canto Vissungo é um canto entoado por negros escravizados no trabalho nas minas, no trabalho dos terreiros, nas brincadeiras, em cortejo de enterros, como modo de preservar sua cultura à revelia dos senhores, através da música. Um dos registros mais populares dos vissungos é o álbum “O Canto dos Escravos”, lançado em 1982, apresentando 14 dos 65 cantos colhidos pelo filólogo, professor e linguista brasileiro Aires da Mata Machado Filho entre o final dos anos 1920 e a década de 1930 no interior de Minas Gerais. No álbum, os cantos são interpretados por três dos mais importantes defensores da preservação das tradições ancestrais afrobrasileiras na música nacional: Geraldo Filme (1928 – 1995), Clementina de Jesus (1901 – 1987) e Tia Doca da Portela (1932 – 2009).
Vissungo Chant
Canto Vissungo is a chant intoned by enslaved Blacks in the work in the mines, in the terreiros (a meeting place for Afro-centered religious expression; a place of belonging, favorable to affective and political connections, protecting and revitalizing black identity), in games, in funeral processions, as a way of preserving their culture through music, in spite of the lords. One of the most popular records of the vissungos is the album “O Canto dos Escravos” (The Chant of the Slaves), released in 1982, featuring 14 of the 65 songs collected by the Brazilian philologist, professor and linguist Aires da Mata Machado Filho, between the late 1920s and the 1930s, in the countryside of Minas Gerais. On the album, the songs are performed by three of the most important sponsors of Afro-brazilian ancestral traditions in national music: Geraldo Filme (1928 – 1995), Clementina de Jesus (1901 – 1987) e Tia Doca da Portela (1932 – 2009).
REFERÊNCIA/REFERENCE:
AZEVEDO, A. M. O Canto dos Escravos: heranças centro-africanas na música contemporânea do Brasil. OPSIS, Goiânia, v. 16, n. 1, p. 238–251, 2016. DOI: 10.5216/o.v16i1.36694. Disponível em: https://revistas.ufg.br/Opsis/article/view/36694. Acesso em: 24 jul. 2022.
Arquitetura estrangeira
Durante o século XIX, a região em torno do Rio Santa Maria passa por significativas transformações. Após 1860, políticas imigrantistas articulam-se com as políticas agrícolas e a imigração europeia será motor da substituição da economia da cana pela cafeeira. Visando promover um certo tipo de povoamento nestas terras, foi impulsionada a cultura do trabalho livre, centrado na figura do trabalhador branco europeu. Imigrantes originários da Suíça, Alemanha, Luxemburgo, Áustria, Itália, Pomerânia, entre outros países, foram atraídos pelas condições climáticas e pelas possibilidades de enriquecimento através do trabalho rural. Para que os imigrantes pudessem acessar, povoar e dinamizar economicamente a agricultura nestas terras altas, o veto legal à apropriação das mesmas foi direcionado aos africanos, indígenas e seus descendentes, cujo incentivo e fomento para acesso e cultivo nunca existiram. A cidade de Santa Leopoldina, nome atual da antiga sede da Colônia de Santa Maria, ainda resguarda as distintas arquiteturas estrangeiras deste período, que vão desde estilos historicistas de inspirações austríacas às arquiteturas rurais com técnicas de enxaimel alemão. Mas esquiva-se, no entanto, em vincular sua a história material com a história de violências fundiárias e raciais que inviabilizaram (e continuam a inviabilizar) o acesso digno à terra e à cidade aos descendentes de indígenas e africanos.
Foreign architecture
During the 19th century, the surroundings of the Santa Maria River underwent significant transformations. After 1860, immigrant-favorable policies articulated with agricultural policies and European immigration would drive the replacement of the sugarcane for the coffee economy. In order to promote a certain type of settlement in these lands, the culture of free work was promoted, centered on the figure of the white European worker. Immigrants from Switzerland, Germany, Luxembourg, Austria, Italy, Pomerania, among other countries, were attracted by the climatic conditions and the possibilities of growing rich through rural work. In order for immigrants to be able to access, populate and economically boost agriculture in these highlands, the legal veto to their appropriation was directed at Africans and Indigenous people and their descendants, whose incentive and promotion for access and cultivation never existed. The City of Santa Leopoldina, current name of the former headquarters of the Colony of Santa Maria, still preserves the distinct foreign architectures of that period, ranging from historicist styles of Austrian inspiration to rural architectures with German half-timbered techniques. But it avoids, however, linking its material history with the history of land and racial violence that made (and continue to make) unfeasible, decent access to the land and the city for Indigenous and Africans descendants.
ATO [4]
CAMINHO DAS ÁGUAS
O ato [4], “caminho das águas”, acompanha a descida do Rio Santa Maria, desde Santa Leopoldina até a capital, Vitória. As águas desse rio organizaram o território até as primeiras décadas do século XX, quando rodovias terrestres e pontes passaram a compor um sistema de infra-estruturas e conectar por terra o território das águas.
SERES ANFÍBIOSACT [4]
WATER'S PATH
Act [4], "water's path", follows the Santa Maria River, from Santa Leopoldina to Vitória, the capital. The waters of this river organized the territory until the first decades of the 20th century, when land routes and bridges began to compose an infrastructure system that started to connect by land the territory of waters.
AMPHIBIOUS BEINGS
Seres anfíbios
Até as primeiras décadas do século XX, as águas do rio Santa Maria organizavam a ocupação do território na região serrana do Espírito Santo. Quando rodovias terrestres e pontes passaram a compor um sistema de infra-estruturas que conectou as áreas agrícolas ao porto da capital, o rio perdeu a centralidade que possuía até então. O memorialista José Ribas da Costa, destaca o protagonismo dos canoeiros na relação que estabeleciam que, “sem chegar a constituir casta privilegiada, tinha contudo a superioridade inequívoca de sua vida anfíbia. Homem como qualquer outro, em terra, possuía também o domínio das águas e privava com o mundo exterior no cosmopolitismo do porto marítimo”. Esses mestres, que descendiam de indígenas e africanos, construíam e manejavam as canoas, dominavam as águas do rio Santa Maria e através dela se inscreviam no mundo.
Amphibious beings
Until the first decades of the 20th century, the waters of the Santa Maria River organized the occupation of the territory in the mountainous region of Espírito Santo. When land routes and bridges became part of an infrastructure system that connected agricultural areas to the port of the capital, the river lost the central role it had until then. The memoirist José Ribas da Costa highlights the canoeists' protagonism in the relationship they established that, “while unable to constitute a privileged caste, the superiority of their amphibious life was unequivocal. Men like all others on land, they also mastered the waters and shared with the outside world, in the cosmopolitanism of the sea port”. These masters, who descended from Indigenous and Africans, built and managed canoes, dominated the waters of the Santa Maria River, and through them, inscribed themselves in the world.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
RIBAS, João da Costa. Canoeiros do Rio Santa Maria. Santa Leopoldina, 1951.
ATO [5]
CIDADE-CONCHA
O ato [5], “cidade-concha”, é sobre o crescimento e arruinamento de Vitória, capital portuária, que se transforma no decorrer do século XX, habitada pelo cruzo das descendências africanas e indígenas, além das européias e suas arquiteturas.
CAIEIRASTERRIVELMENTE BELAS
ACT [5]
SHELL-CITY
Act [5], "shell-city", is about the growth and dismantlement of Vitória, the port capital which was transformed in the course of the 20th century, inhabited by the cross of African and Indigenous descents, in addition to the Europeans and their architecture.
CAIEIRASTERRIBLY BEAUTIFUL
Caieiras
O rio Santa Maria deságua no canal de Vitória na altura da localidade conhecida como Ilha das Caieiras. Caieira é o nome dado ao forno onde conchas diversas, às vezes retiradas de sambaquis (palavra de origem indígena Tupi que significa “amontoado de conchas”), eram queimadas e transformadas em pó, servindo de componente para o mais comum e mais antigo dos aglomerantes utilizados na construção civil no Brasil, o cal de concha. Sendo a concha marinha resultante da agência animal - não humana - do molusco na feitura de seu próprio abrigo, evocamos a habilidade construtiva deste animal para nos reportar às interações interespecíficas presentes no encontro material entre o rio e o mar, as cidades e suas gentes construtoras. A casa-concha do molusco marinho ou a casa-concha do homem assentado na cidade, carregam inscrições sobre a história material das coisas, trajetórias individuais e comunitárias, atuando como lembrete do empenho - humano e não humano - na criação de “espaços perecíveis de liberdade” (BRASILEIRO, 2022). A vida material dos edifícios da cidade, tal qual a concha do mar, é abrigo, testemunho e ruína das inimagináveis vidas oceânicas.
Caieiras
Santa Maria River flows into Vitória's canal, in the vicinity of a place known as Ilha das Caieiras. Caieira is the name given to the oven where various shells, sometimes taken from sambaquis (word of Indigenous Tupi origin that means "heap of shells"), were burned and turned into powder, serving as a component for the most common, and oldest, of the binders used in civil construction in Brazil, the shell lime. Being the marine shell a result of animal agency, — not human — of the mollusc in making its own shelter, we evoke the building ability of this animal to be able to report to the interspecific interactions present in the material encounter between the river and the ocean, the cities and their builders. The shell-house of the marine mollusc or the shell-house of the man anchored in the city carry inscriptions on the material history of things, individual and community trajectories, constant reminders of the commitment — human and not human — to creating "perishable spaces of freedom "(BRASILEIRO, 2022). The material life of the buildings of the city, just like the sea shell, withstands as shelter , testimony and ruin of the unimaginable lives in the ocean.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude. - São Paulo: n-1 edições; Editora Hedra, 2022.
PEREIRA, Gabriela Leandro. A cidade-concha do meu avô: microensaio sobre legado e sobre tempo. In Guaicurus nº 5. – Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Diretoria de Ação Cultural, Centro Cultural, 2022. pp.52 - 57.
Terrivelmente belas
“(...) O dela, é um mundo escondido atrás da fachada da metrópole ordenada. O ainda não-prédios em ruínas e casas decentes de frente para a rua, escondem o cortiço onde ela vive.” Assim, Saidiya Hartman em “A Terrível Beleza do Gueto”, descreve a morada de uma das personagens insubordinadas que teimam em desafiar a vida em “Vidas Rebeldes e Belos Experimentos”. Inspiradas na fabulação crítica de Hartman, olhamos para nossa cidade-concha a partir dos fragmentos de vida que insistem em perambular pelas ruas estreitas de seus morros, ora escapando, ora se exibindo no intervalo entre prédios na cidade-ilha. Uma vida que escorre para as margens, (inevitavelmente beira d’água), ou para o centro (inevitavelmente pedra). “Terrivelmente bela” não exclui a violência (racial e colonial) que informa a construção da cidade, ao passo que impossibilita a dissociação de gestos de beleza e insubmissão. “(...) é uma cidade comum, onde os pobres se reúnem, improvisam formas de vida, experimentam a liberdade e recusam a existência servil roteirizada para eles. É uma zona de extrema privação e desperdício escandaloso.” Junto da fabulação proposta por Hartman, nos referenciamos também no trabalho da artista visual Aline Motta, para pensarmos as possibilidades de criação a partir dos arquivos familiares e da revisita aos lugares. Em passos de reverência e (quase)cortejo, refizemos trajetos e fugas, retomando e sobrepondo a narrativa das oficialidades, aos movimentos dessas vidas insurgentes. São modos de fazer que nos permitem posicionar os sujeitos de nossas (e outras tantas) histórias, na centralidade inerente dos processos de construção e desenvolvimento de especulação a (re)contar, aqui ou em kalunga, sobre as nossas cidades.
Terribly beautiful
"(...) Hers is a world hidden behind the facade of the orderly metropolis. The not-yet-ruined buildings and decent houses facing the street, hide the tenement hall where she lives". Thus, Saidiya Hartman in "The Terrible Beauty of the Slum", describes the home of one of the insubordinate characters who insist on defying life in "Wayward Lives, Beautiful Experiments". Inspired by Hartman's critical fabulation, we look at our shell-city from the fragments of life that insist on wandering through the narrow streets of its morros (hills where self-constructed neighborhoods are established, and commonly referred to as slums in Brazil), sometimes escaping, sometimes showing off, in the gaps between buildings in the island-city. A life that drains away to the shores, (inevitably at the water's edge), or towards the center (inevitably rock). "Terribly beautiful" does not exclude the violence (racial and colonial) that tells the construction of the city, while making it impossible to dissociate gestures of beauty and insubordination. "(...) it is a common city, where the poor gather, improvise ways of life, experience freedom and refuse the servile existence scripted for them. It is a zone of extreme deprivation and scandalous waste." Along with the fabulation proposed by Hartman, we also refer to the work of visual artist Aline Motta, to think about the possibilities of creation from family archives and revisiting places. In steps of reverence and (almost)courtship, we retraced paths and escape routes , resuming and superimposing the narrative of the officials, to the movement of these insurgent lives. They are modes of doing that allow us to position the subjects of our (and many other) stories, in the inherent centrality of the construction processes and development of speculation to (re)tell, here or in kalunga, about our cities.
REFERÊNCIA/REFERENCE:
HARTMAN, Saidiya. Vidas Rebeldes, Belos Experimentos: Histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. - São Paulo: Fósforo Editora, 2022.
Aline Motta: www.alinemotta.com